Carta a uma Andorinha Autista

Fatos da atualidade e do passado que contam as conquistas sociais, tecnológicas e as lutas constantes para uma sociedade mais justa e solidária.
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Lira
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Carta a uma Andorinha Autista

Mensagem não lida por Lira »

Andorinha,

Faz um tempo que não escrevo uma carta a alguém. Ultimamente, estou um turbilhãozinho de sentimentos e me recompondo de um profundo esgotamento mental causado pelo meu emprego. Até cheguei a desatar-me em lágrimas por puro cansaço. Penso em mudar de área. Sequer conseguia escrever direito sem me sentir incapaz. Acho que finalmente estou melhor, mas ainda bem sensível do coração. E não pude deixar de ficar sentida ao ler sobre teu estado de confusão sobre seus sentimentos e dúvidas. “E se eu não for autista? E se isso for só uma desculpa da minha cabeça para eu ser estranha, e no fim eu estar tomando o lugar de alguém que realmente precisa?” Fico sentida porque são coisas que eu tive de enfrentar até um tempo não muito distante.

Apenas hoje voltei à minha definição de normal. Ou melhor, ao meu default. Porque não sou normal e somente agora estou aprendendo a lidar melhor com isso. Ser neurodivergente é uma constância na nossa vida onde temos sempre altos e baixos. E precisamente nas recaídas é onde brota as nossas minhoquinhas mentais sussurrando: “Por que eu sou assim? Eu não queria ser desse jeito. Eu sou mesmo autista ou tô me fazendo?” Às vezes, tudo ao nosso redor faz parecer que tais características são limitações e defeitos crônicos; ao mesmo tempo que, por não serem fatores debilitantes, forçam na gente a ideia meritocrata que podemos “nos curar com o devido esforço”. Contradição cruel de uma sociedade normativa e intolerante com a existência do divergente. Lidar com tantos golpes sobre nossa existência neurodivergente é um processo árduo e que, sinceramente, não consegui executar sozinha.

Na minha última sessão de terapia, finalmente descobri como minha mente funciona cognitivamente. É um pouco daquilo que conversamos sobre como algumas pessoas elaboram seus sentimentos e pensamentos em palavras, de forma semântica. E comigo não é assim. Meus pensamentos e sentimentos brutos sempre se formam em minha mente de uma forma muito visual, abstrata e desordenada, e converter isso em palavras muitas vezes é árduo. Aprendi que nem todas as pessoas têm essa forma cognitiva de pensar como eu tenho. Por isso tenho muita dificuldade em iniciar textos e tarefas! É curioso notar que há uma discrepância cognitiva entre eu estar estável e em crises: em momentos de instabilidade, essa visão cognitiva desaparece e então vêm as vozes, mas ainda abstratas o suficiente para tornar difícil me expressar. Ouvir música para tarefas repetitivas, ou mesmo em estado de crise, me ajuda a limpar a mente. Só agora estou entendendo como minha mente funciona cognitivamente sobre pensamentos e sentimentos.

Não sei se lhe contei com detalhes, mas, um dos maiores impactos do autismo para mim é ser absurdamente context-blind. Vai muito além de não entender piadas irônicas e flertes — a falta de percepção dos contextos às vezes faz-me agir sem o menor tato e empatia para com meu próximo, o que resulta em boa parte dos atritos afetivos que causo. E eu nunca havia percebido que esse foi o principal motivo para termos nos desentendido no passado, Andorinha. Nessas horas me sinto burra e inconsequente, e costumava ter crises pesadas de choro e auto-agressão, odiando meu cérebro por ser assim e ficando confusa do porquê. E é difícil falar da boca pra fora que isso eventualmente passa. É um processo, onde sempre há recaídas. E cansa, cansa muito. Mas, não é também assim em vários aspectos da nossa vida? Altos e baixos, erros e acertos… Somos muito mais que detalhes erráticos para nos odiarmos, e quero te ajudar a enxergar isso ao longo do tempo.

Uma coisa absurda para mim é ver muitas pessoas pegarem um estereótipo do autismo e tratá-lo como um padrão. Há divergentes formas e intensidades de sobrecarga sensorial, comportamentos sociais e emocionais, métodos de masking. Em algumas coisas somos similares, mas certamente também há diferenças gritantes em outras. Às vezes as pessoas ficam naquela coisa de “mais autista, menos autista”, e eu mesma caio em comparações neurodivergentes aqui e ali. Mas não há um lado neurotípico da neurodivergência. Logo, não será um teste neuropsicológico que te invalidará dessa forma — a variedade de cenários é muito ampla para te jogar na caixinha neurotípica. Lhe conheço há anos, Andorinha, e afirmo que neurotípica é uma coisa que você nunca foi, nem em seus tempos de masking.

E isso é tão factual que refletiu no teu antigo relacionamento, Andorinha. “A única coisa que não dá para consertar em mim é ser neurodivergente. E era justamente o que ele parecia pedir.” Teu rancor é justificável, bem como minha revolta ao ver que uma pessoa que tanto amo fora tão negligenciada nos aspectos mais importantes da tua pessoa. Sendo sincera? Houve um descaso generalizado contigo, do ideológico ao mental. Se a pessoa pouco esforço fez para notar que seu político de estimação é diretamente contra a sua existência e a tudo o que você acredita, como esperar que ele aprenda amar de fato? A ideia da exigência de captar sinais mensagens subliminares porque “o amor me fará ver o que há de errado com a minha parceira” já é ridícula e irreal por si só. Irresponsabilidade emocional categorizada como romance, falta de cuidado resultante de um egocentrismo. Um verdadeiro inferno autista, deliberado e negligente que alimenta toda sorte de medo e auto-invalidação.

Por essas e outras, penso que jamais conseguirei me relacionar seriamente com alguém neurotípica. No fundo, é um livramento. O amor sem entendimento não é uma possibilidade realista, algo que parece ser aprendido somente com alguma dor afetiva, porque é amargurante perceber essa postura de um amor. Porém, não somos mais adolescentes para lidar com alguém que não tem vontade de comunicar o básico, sem falar nas cicatrizes que já carregamos. Ele não lhe deixou por você ser autista. Ele lhe deixou por não querer ter responsabilidade para lhe entender. Não dependia de você, logo, jamais seria tua culpa ou do teu cérebro, que não merece tanto ódio por conta da negligência de terceiros. É só o teu jeitinho. Não há nada de mau nisso, por mais difícil que seja aceitar de início.

Você não é quebrada ou defeituosa por ser neurodivergente. Você é a Andorinha que amo muito. Apesar das dores, você permitir ser autêntica fora do padrão social é algo gracioso aos meus olhos e ninguém deve lhe fazer sofrer por isso. Você é uma das pessoas mais amáveis que já conheci, e espero que em breve perca o medo de retribuir esse amor.

Com carinho, sua querida amiga,
Rute
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mayhra
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Re: Carta a uma Andorinha Autista

Mensagem não lida por mayhra »

Lindo texto. Amei!
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Kurisu
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Re: Carta a uma Andorinha Autista

Mensagem não lida por Kurisu »

Quanta criatividade e delicadeza em suas palavras. Também sou neurodivergente e desde que conheço por gente sempre tive dificuldade em lidar com gente e a natureza humana.

Sempre vi estética no abstrato, natureza, lógica, tecnologia, conhecimento e na arte. Para mim a maioria das pessoas ao meu redor parecem superficiais, sempre tento encontrar um significado e uma essência em tudo. E eu costumo ser muito leal as pessoas onde encontro tamanha humanidade e inteligência.
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Daenerys
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Re: Carta a uma Andorinha Autista

Mensagem não lida por Daenerys »

Texto lindo! Você escreve muito bem!
:bjo9:
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"É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós".
José Saramago
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Lira
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Re: Carta a uma Andorinha Autista

Mensagem não lida por Lira »

Daenerys escreveu: 13 Mar 2023 19:59 Texto lindo! Você escreve muito bem!
:bjo9:
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