Um pouco de poesia para quem aprecia...

Fatos da atualidade e do passado que contam as conquistas sociais, tecnológicas e as lutas constantes para uma sociedade mais justa e solidária.
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Absinto
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O MEU NIRVANA

No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!

Nessa manumissão schopenhauereana,
Onde a Vida do humano aspeto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Idéia Soberana!

Destruída a sensação que oriunda fora
Do tato — ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebéias —

Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Idéias!

Augusto dos Anjos
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MATER ORIGINALIS

Forma vermicular desconhecida
Que estacionaste, mísera e mofina,
Como quase impalpável gelatina,
Nos estados prodrômicos da vida;

O hierofante que leu a minha sina
Ignorante é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade indefinida
Que o insigne Herbert Spencer nos ensina.

Nenhuma ignota união ou nenhum sexo
À contingência orgânica do sexo
A tua estacionária alma prendeu...

Ah! De ti foi que, autônoma e sem normas,
Oh! Mãe original das outras formas,
A minha forma lúgubre nasceu!

Augusto dos Anjos
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ÚLTIMO CREDO

Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro — este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!

É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!

Creio, como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolui...

Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular eu que ontem fui!

Augusto dos Anjos
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ULTIMA VISIO


Quando o homem, resgatado da cegueira
Vir Deus num simples grão de argila errante,
Terá nascido nesse mesmo instante
A mineralogia derradeira!

A impérvia escuridão obnubilante
Há de cessar! Em sua glória inteira
Deus resplandecerá dentro da poeira
Como um gasofiláceo de diamante!

Nessa última visão já subterrânea,
Um movimento universal de insânia
Arrancará da insciência o homem precito...

A Verdade virá das pedras mortas
E o homem compreenderá todas as portas
Que ele ainda tem de abrir para o Infinito!

Augusto dos Anjos


Esta poesia, muito citada pelo célebre crítico literário, escritor e poeta Alexey Bueno, pertence à fase mais madura de Augusto dos Anjos. Surpreende não só pela forma e perfeita harmonia de sons como, ainda, pela maturidade com que aborda a crença no panteísmo.
O determinismo científico revela-se como tragédia cósmica, embora o mundo se anime por uma unidade da matéria.
O mundo augustiano é panteísta, embora a unidade universal esteja fadada à mosca alegre da putrefação.
Como bem explicado por Fabiano Rodrigo da Silva Santos (Panteísmo e a cosmovisão da poesia brasileira da belle époque: diálogos entre Augusto dos Anjos, Pedro Kilkerry e Gilka Machado), o deus reconhecido pelo poeta não necessariamente se confunde com o Deus Hebreu. Seu deus seria um princípio universal reitor da Natureza (monada ou ápeiron), vista tal Natureza (com "N" mesmo) como uma "velha nefasta" ou madrasta que "mata nas cruzes os filhos que produzes durante os desgraçados nove meses". Assim se expressa Fabiano da Silva Santos:

"Assim, ao se aproximar da tragédia, a ciência em Augusto dos Anjos haure o encantamento da fatalidade; o monismo de Haeckel é o ápeiron de Anaximandro de Mileto e é também um deus destruidor que, por viver em tudo, também desfere contra si sua própria força destrutiva, apodrecendo indefinidademente no seio do mundo e com o mundo. Imerso em condição tão dolorosa, resta ao poeta transcender, encontrar na arte o refúgio à dor de existir, a compreensão do infinito velado pelos desejos e, talvez, o ponto estável localizado acima da voragem cega do universo".

A obra augustiana, dessa forma, assume um sentido único como descritora de uma visão de mundo onde Deus seria o princípio universal criador da substância universal e que poderia ser encontrado em um "simples grão de argila errante". Os seres nascidos dessa substância se encontrariam sujeitos à putrefação e à decadência. Contudo, estes fenômenos seriam libertários, pois é devido a eles que o mundo e os seres se renovam e a matéria rica é sempre reaproveitada em outros seres e coisas, ao passo em que nós, ao morrermos, nos libertaríamos das amarras carnais e passaríamos a compor um plano universal integrados a todos os seres na unidade da matéria.
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NovaOrdem
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Re: Um pouco de poesia para quem aprecia...

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Escrevi um comentário enorme aqui sobre o ultimo poema e pr anão estragar o tópico, preferir apagar e colar em MP. ok? rs
"Para criar inimigos não é necessário declarar guerra, basta dizer o que pensa" - Martin Luther King
NovaOrdem
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Re: Um pouco de poesia para quem aprecia...

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Poema de Sete Faces
Carlos Drummond de Andrade

Quando nasci, um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida

As casas espiam os homens
Que correm atrás de mulheres
A tarde talvez fosse azul
Não houvesse tantos desejos

O bonde passa cheio de pernas
Pernas brancas pretas amarelas
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração
Porém meus olhos
Não perguntam nada

O homem atrás do bigode
É sério, simples e forte
Quase não conversa
Tem poucos, raros amigos
O homem atrás dos óculos e do bigode

Meu Deus, por que me abandonaste
Se sabias que eu não era Deus
Se sabias que eu era fraco

Mundo mundo vasto mundo
Se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima, não seria uma solução
Mundo mundo vasto mundo
Mais vasto é meu coração

Eu não devia te dizer
Mas essa lua
Mas esse conhaque
Botam a gente comovido como o diabo
"Para criar inimigos não é necessário declarar guerra, basta dizer o que pensa" - Martin Luther King
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Absinto
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Re: Um pouco de poesia para quem aprecia...

Mensagem não lida por Absinto »

NovaOrdem escreveu:Escrevi um comentário enorme aqui sobre o ultimo poema e pr anão estragar o tópico, preferir apagar e colar em MP. ok? rs
Não me importo que você poste o que pensa, desde que não me xingue tá tudo bem! Rsrsrsrs
Apenas para frisar, não creio no panteísmo, embore ache única a visão de mundo de Augusto dos Anjos.
Os comentários acima são apenas críticas literárias que tentam explicar o pensamento do poeta, que, ao longo de sua vida, faz um movimento pendular entre o ceticismo e o panteísmo.
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Daenerys
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Re: Um pouco de poesia para quem aprecia...

Mensagem não lida por Daenerys »

A mulher de Lot

Dizem que olhei para trás de curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração — amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus — simplesmente tudo que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento bateu,
despenteou meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.

Wislawa Szymborska
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"É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós".
José Saramago
Loudome
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Re: Um pouco de poesia para quem aprecia...

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Aproveitei que hoje é feriado, e concluí um soneto. Em memória de meu tio. Mais tarde pretendo fazer outro. Meu tio faleceu bastante jovem, então o tema dele será a idade de quando ele falecera.


X

Vinte e seis

X

De teus sonhos o sopro material
Que cedo às cinzas sucumbiu
D'onde ceifou-se o lírio oriental
Espinho sequer dali surgiu

Descansa! A guerra te perseguiu
E nímio o influxo do amor irreal
Que ávido buscavas te extinguiu
Extinto! Filho do ocaso fatal

Se voraz o solo que fragmenta
Em si integra de todos o tudo
Na essencilidade mesma da mente

E tua substância afinal complementa
Contemplativamente o belo mundo
O Nous recomporá tua semente
Loudome
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Re: Um pouco de poesia para quem aprecia...

Mensagem não lida por Loudome »

Semana passada completei outro. Mas, não tem tema, ainda.


Anuviada genese instintual
Manchada por ebônico pigmento
Das telas de um cego bouguereau
Herege do mais desejado alento

Ao entrar no nume da'lma o museu
Vi pelas salas espelhos somente
Refletindo claro o grito de Romeu
Ao ver Julieta esvaecente

Chocante ilusão do carmíneo amor
Que faz dobrar-se feixes e estrelas
Qual sonho que de José findou
Na'escravidão e sofrimento apenas

Ó, minha alma, em uníssono comigo
Concorda esta vez unicamente
Que as magóas que conduzo aflito
Não reviverei voluntariamente

Mete na pá do mundo todo o sal
Que assassina a flor e seca a planta
Mete inda na raiz o branco cal
E ceifa finalmente a Esperança

No augusto solo, no argênteo mar
Onde acorrentados criei meus monstros
Lança a tigela da ira de Jeová
E sopra a morba flama nesses antros

Na praia, bateme no pé a onda
E toda ira que calculou meu ser
Obumbra a areia. Retorna e Estronda
A água com teor de entorpecer

Acima,

Logo mesclamse de rubro os tons
Do sol altissonante que a rir se tolda
E noturnas aves augurando sons
As cenas todas que meu ser emolda

Rasgarei:

Esses versos desestruturados
Filhos de transtorno animalesco
Velhos fragmentos desordenados
Revestidos de adorno brutalesco

O amanhã.
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