O Evangelho Segundo Jesus Cristo - Saramago

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Adriano
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Re: O Evangelho Segundo Jesus Cristo - Saramago

Mensagem não lida por Adriano »

Nanda Lima escreveu:Além do seu raciocínio neste post ter sido meio confuso, eu não gosto do SERÁ.
Será que a Bíblia não foi "construída" a partir de várias metades de vários mitos ajuntados por várias pessoas de várias tribos diferentes? :4
Pode ser que sim, pode ser que sim...
Tudo é questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo
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Rogério
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Re: O Evangelho Segundo Jesus Cristo - Saramago

Mensagem não lida por Rogério »

O sol é deus , isto é uma mitologia
Mitologia = Religião dos Outros.

Gasshô :7
(^_^)
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Jerry
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Re: O Evangelho Segundo Jesus Cristo - Saramago

Mensagem não lida por Jerry »

Bom, eu tinha alguma esperança que Saramago fosse fazer alguma referência no seu livro sobre a questão Israel e Palestina, nos dias atuais, ainda que de forma alegórica. E não é que ele o fez mesmo? Ele se vale do fato de que a Judéia estava, no primeiro século, sob o jugo romano, e havia guerrilheiros que lutavam contra Roma. A clássica passagem em que Jesus está no templo, a conversar com os entendidos da lei, é usada para isso. Volto a lembrar que os diálogos nas obras de Saramago não são marcados por travessões, como estamos acostumados, mas com vírgulas. Após uma vírgula, se a frase começar com letra maiúscula, isso indica que o outro interlocutor está falando. Um dos guerrilheiros dá a deixa:
José Saramago escreveu:Queres então dizer que é vontade do Senhor que os romanos mandem em Israel, Sim, Se é como dizes, temos de concluir que os rebeldes que andam a lutar contra os romanos estão também a lutar contra o Senhor e a sua vontade, Concluis mal, E tu contradizes-te, escriba, O querer de Deus pode ser um não querer, o seu não querer a sua vontade, Só o querer do homem é verdadeiro querer, e não tem importância perante Deus, Assim é, Então, o homem é livre, Sim, para poder ser castigado (p. 171-172).
Agora vamos diretamente à questão que refere mais diretamente a Israel de hoje, e sua opressão sobre os palestinos:
José Saramago escreveu:Mais um homem levantou a mão, outra pergunta se apresentava... Quando viemos do Egipto, viviam na terra a que chamamos de Israel outras nações que tivemos de combater, naqueles dias os estrangeiros éramos nós e o Senhor deu-nos ordem para que matássemos e aniquilássemos os que se opunham à sua vontade, A terra foi-nos prometida, mas tinha de ser conquistada, não a comprámos nem nos foi oferecida, E hoje é sob um domínio estrangeiro que estamos vivendo, a terra que havíamos tornado nossa deixou de o ser, A ideia de Israel mora eternamente no espírito do Senhor, por isso, onde quer que esteja o seu povo, reunido ou disperso, aí estará o Israel terrestre, Daí se deduz, suponho, que em toda a parte onde nós, judeus, estivermos, sempre os outros homens serão estrangeiros, Aos olhos do Senhor, sem dúvida, Mas o estrangeiro que viva connosco será, segundo a palavra do Senhor, nosso compatriota e a ele devemos amar como a nós mesmos porque fomos estrangeiros no Egipto, O Senhor o disse, Concluo, então, que o estrangeiro que devemos amar é aquele que, vivendo connosco, não seja tão poderoso que nos oprima, como é, nos tempos de hoje, o caso dos romanos, Concluis bem, Agora vais dizer-me, segundo o que te aconselhem as tuas luzes, se, chegando nós um dia a ser poderosos, permitirá o Senhor que oprimamos os estrangeiros que o mesmo Senhor nos mandou amar, Israel não poderá querer senão o que o Senhor quer, e o Senhor, porque escolheu este povo, quererá tudo quanto for bom para Israel, Mesmo que seja não amar a quem se deva, Sim, se essa for, finalmente, a sua vontade, De Israel ou do Senhor, De ambos, porque são um, Não violarás o direito do estrangeiro, palavra do Senhor, Quando o estrangeiro o tiver e lho reconheçamos, disse o escriba (p. 172-173).
Grifos meus.

Estupor e aplausos perante o raciocínio, a simplicidade e a lucidez dessas palavras de Saramago... :10
"Quando chegará, Senhor, o dia em que virás a nós para reconheceres os teus erros perante os homens?" - Saramago

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Jerry
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Re: O Evangelho Segundo Jesus Cristo - Saramago

Mensagem não lida por Jerry »

Sobre a atitude do adolescente Jesus diante do túmulo coletivo das crianças que foram mortas em Belém quando do seu nascimento:
José Saramago escreveu:Quando ficou sozinho, Jesus ajoelhou-se no chão, ao lado da pedra que fechava a entrada do túmulo, tirou do alforge um resto de pão que lhe ficara, já endurecido, esfarelou um bocado nas palmas das mãos e espalhou-o ao longo da porta, como uma oferenda às invisíveis bocas dos inocentes. (...) uns tantos putos de fraldas e chupeta, chorões e ranhosos, subitamente a morte viera e tornara-os em gigantescas presenças que não cabem em ossários e gavetas, e todas as noites, se há justiça, saem para o mundo a mostrar as feridas mortais, as portas por onde lhes saiu a vida, abertas à ponta de espada (p. 178-179).
Mais uma vez sobre a responsabilidade de Deus diante das mortes inocentes:
José Saramago escreveu:Pode bem pouco, afinal, a mão de Deus, se não chega para interpor-se entre o cutelo e o sentenciado (p. 180).
.

Sobre a juventude de Jesus:
José Saramago escreveu:... mas a juventude é assim, egoísta, presunçosa, e Jesus, que ele saiba, não tem motivos para ser diferente dos da sua idade (p. 183).
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Jerry
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Re: O Evangelho Segundo Jesus Cristo - Saramago

Mensagem não lida por Jerry »

Agora, meus parcos companheiros com quem estou dividindo esses trechos do Evangelho Segundo Jesus Cristo, o livro atinge um clímax inesperado. Jesus trabalha para Pastor, que é o mesmo Anjo da Anunciação de seu nascimento, e aprende comele a arte de pastorear. Mas o embate intelectual e teológico entre ambos logo irrompe, e Jesus tem suas certezas a respeito de Deus e de sua Palavra questionadas por Pastor. Mesmo eu, que não sou mais cristão há uma década, surpreendi-me com a audácia de Saramago, bem como com a pertinência de seus questionamentos.

Ao ver que os carneiros doentes ou velhos são sacrificados por Pastor, o jovem Jesus tem a seguinte reação:
José Saramago escreveu:Jesus, a primeira vez que tal aconteceu depois que começara a trabalhar para o pastor, protestou contra a fria crueldade, mas ele respondeu-lhe simplesmente, Ou os mato, como sempre tenho feito, ou os deixo abandonados para morrerem sozinhos nesses desertos, ou detenho o rebanho e fico aqui à espera de que morram, sabendo que, se levarem dias a morrer, acabará o pasto por não chegar para os que ainda estão vivos, diz-me tu como procederias se estivesses no meu lugar, se, como eu, fosses senhor da vida e da morte do teu rebanho. Jesus não soube que responder... (p. 189-190)
Sobre a real natureza do Pastor, Anjo da Anunciação do nascimento de Jesus:
José Saramago escreveu:Como quer que seja, o que Jesus já sabe, sem precisar perguntar, é que o seu enigmático companheiro não é um anjo do Senhor, pois os anjos do Senhor cantam em todos os momentos do dia e da noite as glórias do Senhor, não são como os homens, que só o fazem por obrigação e nas ocasiões regulamentares, também é certo que os anjos têm razões mais próximas e justificadas para cantarem tanto, pois que com o dito Senhor vivem eles no céu, por assim dizer de casa-e-pucarinho (p. 191).
Primeira altercação entre Jesus e Pastor sobre Deus:
José Saramago escreveu:... como se segurasse diante de si uma lança e um escudo protector, [Jesus] exclamou, Só o Senhor é Deus. O sorriso de Pastor apagou-se, a boca ganhou de súbito um vinco amargo, Sim, se existe Deus terá de ser um único Senhor, mas era melhor que fossem dois, assim haveria um deus para o lobo e um deus para a ovelha, um para o que morre e outro para o que mata, um deus para o condenado, um deus para o carrasco, Deus é uno, completo e indivisível, clamou Jesus, e quase chorava de piedosa indignação, ao que o outro respondeu, Não sei como pode Deus viver, a frase não passou daqui porque Jesus, com a autoridade de um mestre da sinagoga, cortou, Deus não vive, é, Nessas diferenças não sou entendido, mas o que te posso dizer é que não gostaria de me ver na pele de um deus que ao mesmo tempo guia a mão do punhal assassino e oferece a garganta que vai ser cortada, Ofendes a Deus com esses pensamentos ímpios, Não valho tanto, Deus não dorme, um dia te punirá, Ainda bem que não dorme, dessa maneira evita os pesadelos do remorso, Por que me falas tu de pesadelos e remorso, Porque estamos a falar do teu deus, E o teu, Não tenho deus, sou como uma das minhas ovelhas, Ao menos dão filhos para os altares do Senhor, E eu digo-te que como lobos uivariam essas mães se o soubessem. Jesus ficou pálido, sem resposta. Agora o rebanho rodeava-os, atento, num grande silêncio (p. 192-193).
Sobre o mito acerca de um mundo e uma humanidade criados pelo Diabo, em oposição ao mundo e à humanidade criados por Deus:
José Saramago escreveu:Um dia, quando era ainda menino pequeno, Jesus ouvira contar a uns velhos viajantes que passaram por Nazaré que no interior do mundo existiam enormíssimas cavernas onde se encontravam, como à superfície, cidades, campos, rios, bosques e desertos, e que esse mundo inferior, em tudo cópia e reflexo deste em que vivemos, tinha sido criado pelo Diabo depois de o ter precipitado Deus das alturas do céu, em castigo da sua revolta. E como o Diabo, de quem Deus ao princípio fora amigo, e ele favorito de Deus, comentando-se mesmo no universo que desde os tempos infinitos nunca se vira uma amizade igual àquela, como o Diabo, diziam os velhos, estivera presente no acto do nascimento de Adão e Eva, e tinha podido aprender como se fazia, então repetiu no seu mundo subterrâneo a criação de um homem e de uma mulher, com a diferença, ao contrário de Deus, de não lhes ter proibido nada, razão por que não teria havido, no mundo do Diabo, pecado original. Um dos velhos atreveu-se mesmo a dizer, E como não houve pecado original, também não houve nenhum outro (p. 194-195).
Nova altercação entre Jesus e Pastor: pode o homem usar qualquer parte do corpo criado por Deus para reverenciá-lo?:
José Saramago escreveu:... [disse Pastor] quando tu adoras o teu Deus não é os pés que levantas para ele, mas as mãos, e contudo podias levantar qualquer parte do corpo, até o que tens entre as pernas, se não és um eunuco. Jesus corou violentamente, a vergonha e uma espécie de susto sufocaram-no, Não ofendas o Deus que não conheces, exclamou por fim, e Pastor, acto contínuo, Quem criou o teu corpo, Deus foi quem me criou, Tal como é e com tudo o que tem, Sim, Há alguma parte do teu corpo que tenha sido criada pelo Diabo, Não, não, o corpo é obra de Deus, Então todas as partes do teu corpo são iguais perante Deus, Sim, Poderia Deus rejeitar como obra não sua, por exemplo, o que tens entre as pernas, Suponho que não, mas o Senhor, que criou Adão, expulsou-o do paraíso, e Adão era obra sua, Responde-me direito, rapaz, não me fales como um doutor da sinagoga, Queres obrigar-me a dar-te as respostas que te convêm, e eu recito-te, se for preciso, todos os casos em que o homem, porque assim o ordenou o Senhor, não poderá, sob pena de contaminação e morte, descobrir uma nudez alheia ou a sua própria, prova de que essa parte do corpo é, por si mesma, maldita, Não mais maldita do que a boca quando mente e calunia, e ela serve-te para louvares o teu Deus, Não te quero ouvir, Tens de ouvir-me, que mais não seja para atenderes à pergunta que te fiz, Que pergunta, Se Deus poderá rejeitar como obra não sua o que levas entre as pernas, diz sim ou não, Nãopode, Porquê, Porque o Senhor não pode não querer o que antes quis. Pastor acenou a cabeça lentamente e disse, Por outras palavras, o teu Deus é o único guarda duma prisão onde o único preso é o teu Deus (p. 195-196).
Pastor pede a Jesus que escolha qualquer ovelha ou cabra do rebanho para ter relação sexual com o animal. Irado, Jesus começa a citar vários textos bíblicos onde Deus proíbe tal ato. Eis a reação de Pastor:
José Saramago escreveu:De súbito, Pastor levantou os braços e clamou, em estentórea voz, virado para o rebanho, Ouvide, ouvide, ovelhas que aí estais, ouvide o que nos vem ensinar este sábio rapaz, que não é lícito fornicar-vos, Deus não o permite, podeis estar tranquilas, mas tosquiar-vos, sim, maltratar-vos, sim, matar-vos, sim, e comer-vos, pois para isso vos criou a sua lei e vos mantém a sua providência (p. 197).
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Jerry
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Re: O Evangelho Segundo Jesus Cristo - Saramago

Mensagem não lida por Jerry »

Sobre a promessa de Jesus de nunca se alimentar das ovelhas que criou, no seu ofício de pastor:
José Saramago escreveu:Comer o animal que matámos é a única maneira de respeitá-lo, mau é comerem uns o que outros tiveram de matar (p. 200).
Sobre o que os seres - inclusive o Diabo - trazem dentro de si:
José Saramago escreveu:Os escravos vivem para servir-nos, talvez devêssemos abri-los para sabermos se levam escravos dentro, e depois abrir um rei para ver se tem outro rei na barriga, e olha que se encontrássemos o Diabo e ele deixasse que o abríssemos, talvez tivéssemos a surpresa de ver saltar Deus lá de dentro (p. 200).
Sobre o horror do jovem Jesus ao ver a carnificina que era o Templo de Jerusalém:
José Saramago escreveu:... é ver como as gorduras crepitam, como as carnes rechinam, Deus, nas empíreas alturas, respira, comprazido, os odores da carnagem. Jesus apertou o cordeiro contra o peito, não compreende por que não aceita Deus que no seu altar se derrame uma concha e leite, sumo da existência que passa de um ser a outro ser, ou nele se espalhe, com um gesto de semeador, um punhado de trigo, matéria entre todas substantiva do pão imortal. (...) Durante um momento, o temo do castigo fê-lo hesitar, mas a mente, numa rapidíssima imagem, representou-lhe a visão aterradora de um mar de sangue infinito, o sangue dos inumeráveis cordeiros e outros animais sacrificados desde a criação do homem, que para isso mesmo é que a humanidade foi posta neste mundo, para adorar e sacrificar (p. 207-208).
Depois de se negar a entregar um cordeiro que ganhara a Deus no seu Templo de Jerusalém, Jesus retorna para o deserto, onde é inquirido por Pastor:
José Saramago escreveu:Chegará o dia em que começará a esquecer-te, alem disso vai-se cansar de ser ele sempre a procurar-te, o remédio seria marcá-lo, dar-lhe um golpe numa orelha, por exemplo, Pobre bichinho, Não sei porquê, tu também estás marcado, cortaram-te o prepúcio para se saber a quem pertences, Não é o mesmo, Não devia ser, mas é (p. 214).
Sobre o dilema de Jesus e suas ovelhas:
José Saramago escreveu:... o seu problema, a partir de agora, iria ser a insolúvel contradição entre comer os cordeiros e não matar os cordeiros (p. 214).
Sobre o primeiro encontro entre Deus e Jesus, que saíra a procurar sua ovelha perdida:
José Saramago escreveu:Então, como se de súbito as colinas se tivessem arredado do seu caminho, Jesus saiu do labirinto dos vales para um espaço circular liso e arenoso onde, no centro exacto, viu a ovelha. Correu para ela, tanto quanto lho permitiam os pés feridos, mas uma voz deteve-o, Espera. Uma nuvem da altura de dois homens, que era como uma coluna de fumo girando lentamente sobre si mesma, estava diante dele, e a voz viera da nuvem. Quem me fala, perguntou Jesus, arrepiado, mas adivinhando já a resposta. A voz disse, Eu sou o Senhor, e Jesus soube por que tivera de despir-se no limiar
do deserto. Trouxeste-me aqui, que queres de mim, perguntou, Por enquanto nada, mas um dia hei-de querer tudo, Que é tudo, A vida, Tu és o Senhor, sempre vais levando de nós as vidas que nos dás, Não tenho outro remédio, não podia deixar atravancar-se o mundo, E a minha vida, quere-la para quê, Não é ainda tempo de o saberes, ainda tens muito que viver, mas venho anunciar-te, para que vás bem dispondo o espírito e o corpo, que é de ventura suprema o destino que estou a preparar para ti, Senhor, meu Senhor, não compreendo nem o que dizes nem o que queres de mim, Terás o poder e a glória, Que poder, que glória, Sabê-o-ás quando chegar a hora de te chamar outra vez, Quando será, Não tenhas pressa, vive a tua vida como puderes, Senhor, eis-me aqui, se nu me trouxeste diante de ti, não demores, dá-me hoje o que tens guardado para dar-me amanhã, Quem te disse que tenciono dar-te alguma coisa, Prometeste, Uma troca, nada mais que uma troca, A minha vida por não sei que pago, O poder, E a glória, não me esqueci, mas se não me dizes que poder, e sobre quê, que glória, e perante quem, será como uma promessa que veio cedo de mais, Tornarás a encontrar-me quando estivéres preparado, mas os meus sinais acompanhar-te-ão desde agora, Senhor, diz-me, Cala-te, não perguntes mais, a hora chegará, nem antes nem depois, e então saberás o que quero de ti, Ouvir-te, meu Senhor, é obedecer, mas tenho de fazer-te ainda uma pergunta, Não me aborreças, Senhor, é preciso, Fala, Posso levar a minha ovelha, Ah, era isso, Sim, era só isso, posso, Não, Porquê, Porque ma vais sacrificar como penhor da aliança que acabo de celebrar contigo, Esta ovelha, Sim, Sacrifico-te outra, vou ali ao rebanho e volto já, Não me contraries, quero esta, Mas repara, Senhor, que tem defeito, a orelha cortada, Enganas-te, a orelha está intacta, repara, Como é possível, Eu sou o Senhor, e ao Senhor nada é impossível, Mas esta é a minha ovelha, Outra vez te enganas, o cordeiro era meu e tu tiraste-mo, agora a ovelha paga a dívida, Seja como queres, o mundo todo pertence-te e eu sou o teu servo, Sacrifica então, ou não haverá aliança, Mas vê, Senhor, que estou nu, não tenho cutelo nem faca, estas palavras disse-as Jesus cheio de esperança de poder ainda salvar a vida da ovelha, e Deus respondeu-lhe, Não seria eu o Senhor se não pudesse resolver-te essa dificuldade, aí tens. Palavras não eram ditas, apareceu aos pés de Jesus um cutelo novo, Vá, despacha-te, tenho mais que fazer, disse Deus, não posso ficar aqui eternamente. Jesus empunhou o cutelo, avançou para a ovelha que levantava a cabeça, hesitante em reconhecê-lo, pois nunca o tinha visto nu, e, como é por de mais sabido, o olfacto destes animais não vale grande coisa. Estás a chorar, perguntou Deus, Tenho os olhos sempre assim, disse Jesus. O cutelo subiu, tomou o ângulo do golpe, e caiu velozmente como o machado das execuções ou a guilhotina que ainda falta inventar. A ovelha não soltou um som, apenas se ouviu, Aaaah, era Deus suspirando de satisfação. Jesus perguntou, E agora, posso-me ir embora, Podes, e não te esqueças, a partir de hoje pertences-me, pelo sangue, Como devo ir-me de ti, Em princípio, tanto faz, para mim não há frente nem costas, mas o costume é ir recuando e fazendo vénias, Senhor, Que enfadonho és, homem, que temos mais agora, O pastor do rebanho, Que pastor, O que anda comigo, Quê, É um anjo, ou um demónio, É alguém que eu conheço, Mas diz-me, é anjo, é demónio, Já to disse, para Deus não há frente nem costas, passa bem. A coluna de fumo estava e deixou de estar, a ovelha desaparecera, só o sangue ainda se percebia, e esse procurava esconder-se na terra.

Quando Jesus chegou ao campo, Pastor olhou-o fixamente e perguntou, A ovelha, e ele respondeu, Encontrei Deus, Não te perguntei se encontraste Deus, perguntei-te se achaste a ovelha, Sacrifiquei-a, Porquê, Deus estava lá, teve de ser. Com a ponta do cajado, Pastor fez um risco no chão, fundo como rego de arado, intransponível como uma vala de fogo, depois disse, Não aprendeste nada, vai (p. 218-220).
Grifos meus.
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Re: O Evangelho Segundo Jesus Cristo - Saramago

Mensagem não lida por shurelambers »

O texto nos faz pensar Jerry, aliás esse é o grande mérito de Saramago, faz com que o leitor pense.
O problema é que a manipulação mental feita na cabeça das ovelhinhas durante anos, faz com que elas não pensem mais. Afinal foram treinadas para receber "alimento no tempo apropriado" direto da mesa do Corpo Governante.
Qualquer texto que mostre uma realidade alternativa, ou qualquer crítica referente a religião "cristã" é automaticamente rechaçado como falso, ou preconceituoso.
Infelizmente desprogramar a mente leva anos.
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Re: O Evangelho Segundo Jesus Cristo - Saramago

Mensagem não lida por Jerry »

Shure, são pessoas como você que me incentivam a continuar postando. Tópicos como esse, que exigem leitura e reflexão, geralmente ficam às moscas. Mas continuo postando, porque sei que há quem leia. Pena que quem precisa mais se recusa. É como uma reunião de pais na escola. Geralmente só aparecem os pais dos bons alunos. Vão, e recebem elogios, porque elogiar também é bom. Mas os pais dos alunos problemáticos, que precisariam ser ouvidos e ouvir, não aparecem. Não seria devido a essa mesma ausência, em grande parte, o motivo de seus filhos serem tão problemáticos? Pão para quem precisa, mas nem todos se dão conta da sua desnutrição filosófica...
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Re: O Evangelho Segundo Jesus Cristo - Saramago

Mensagem não lida por cleandro »

"Evangelho Segundo Jesus Cristo" do Saramago é o melhor livro que já li.
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Re: O Evangelho Segundo Jesus Cristo - Saramago

Mensagem não lida por Jerry »

Então fique à vontade para comentar algum trecho, Cleandro... :4
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