Sobre a circuncisão de Jesus, e o posterior culto ao seu prepúcio:
José Saramago escreveu:No oitavo dia depois do nascimento, levou José o seu primogénito à sinagoga para ser circuncidado, e ali o sacerdote cortou destramente, com uma faca de pedra e a habilidade de um prático, o prepúcio da chorosa criança, cujo destino, do prepúcio falamos, não do menino, daria por si só um romance, contado a partir deste momento, em que não passa de um pálido anel de pele que apenas sangra, e a sua santificação gloriosa, quando foi papa Pascoal I, no oitavo século desta nossa era. Quem o quiser ver, hoje, não tem mais do que ir à paróquia de Calcata, que está perto de Viterbo, cidade italiana, onde relicariamente se mostra para edificação de crentes empedernidos e desfrute de incréus curiosos (p. 69).
Sobre a libido de Jesus ao sugar o leite de Maria:
José Saramago escreveu:Jesus, mas ele ainda não pode saber que é este o seu nome, por enquanto não passa de um pequeno ser natural, como o pinto duma galinha, o cachorro duma cadela, o cordeiro duma ovelha, Jesus, dizíamos, suspirou com deliciada satisfação, sentindo na face o suave peso do seio, a humidade da pele ao contacto doutra pele. A boca encheu-se-lhe do sabor adocicado do leite materno, e a ofensa entre as pernas [refere-se aqui o autor à circuncisão recém-feita], insuportável antes, tonou-se distante, dissipava-se numa espécie de prazer que nascia e não acabava de nascer, como se o detivesse um limiar, uma porta fechada ou uma proibição. Crescendo, irá esquecer estas sensações primitivas, a ponto de não poder imaginar que as tivesse experimentado, é assim com todos nós, onde quer que tenhamos nascido, de mulher sempre, e sea qual for o destino que nos espera (p. 69-70).
Reflexão de José ao perceber que seu filho é tão frágil, como todos os demais, que poderia vir a morrer:
José Saramago escreveu:Disse consigo mesmo, Morrerá, terá de morrer, e o coração doeu-lhe, mas depois pensou que, segundo a ordem natural das coisas, deverá ser o primeiro a morrer, e que essa morte sua, ao retirá-lo de entre os vivos, ao fazer dele ausência, dará ao filho uma espécie de, como dizer, eternidade limitada, passe a contradição, a eternidade que é continuar ainda por algum tempo mais quando os que conhecemos e amámos já não existem (p. 74).
José no templo, ao oferecer os sacrifícios por seu filho Jesus:
José Saramago escreveu:José, de cabeça levantada, quereria perceber, identificar, entre o fumo geral e os cheiros gerais, o fumo e o cheiro do seu sacrifício, quando o sacerdote, depois de salgar a cabeça e o corpo da ave, os atirar à fogueira. Mal pode ter a certeza. Ardendo entre as labaredas revoltas, atiçadas pela gordura, o corpinho esventrado e flácido da rola não enche a cova de um dente de Deus. (...) José já não tem mais que fazer ali, deve retirar-se, levar a mulher e o filho. Maria está outra vez limpa, de verdadeira pureza não se fala, evidentemente, que a tanto não poderão aspirar os seres humanos em geral e as mulheres em particular, foi o caso que com o tempo e o recolhimento se lhe normalizaram os fluxos e os humores, tudo voltou ao que era antes, a diferença é haver duas rolas a menos no mundo e um menino a mais que as fez morrer. (p. 80-81).
José ouve os planos de matança das crianças abaixo de 3 anos, e corre a salvar unicamente o seu filho, em Belém, mas não acha necessário avisar a todos os pais da cidade, motivo pelo qual se culpará pelo resto de sua vida:
José Saramago escreveu:Um homem bom que cometeu um crime, não imaginas quantos antes dele os cometeram, também, é que os crimes dos homens bons não têm conta, e, ao contrário do que se pensa, são os únicos que não podem ser perdoados. (...) ... o carpinteiro podia ter feito tudo, avisar a aldeia de que vinham aí os soldados a matar as crianças, ainda havia tempo para que os pais delas as levassem e fugissem, podiam, por exemplo, ir esconder-se no deserto, fugir para o Egipto, à espera de que morresse Herodes, que está por pouco.
(...)
... dos seus pensamentos, agora caridosos e pacíficos, porém também capazes de engendrar um monstro, como a gratidão a Deus porque os soldados deixaram com vida o seu fiho querido, por ignorância e desleixo, é certo, eles que a tantos mataram. (p. 93 e 97).
Digressões acerca dos anjos, que muito, pouco ou nada ajudam - se é que às vezes não atrapalham -, vez que nem eles evitaram a morte das criancinhas de Belém:
José Saramago escreveu:Um anjo realmente merecedor desse nome até podia ter poupado o pobre José a estas agonias, bastava que aparecesse em sonho aos pais dos meninos de Belém, dizendo a cada um, Levanta-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egipto e fica lá até que eu te avise, pois Herodes procurará o menino para o matar, e desta maneira savavam-se os meninos todos. (...) Claro que, por meio deste aviso, na aparência benevolente e protector, o anjo estaria a devolver as crianças a lugares, quaisquer que fossem, onde, no tempo próprio, se encontrariam com a morte final, mas os anjos, mesmo podendo muito, como se tem visto, levam consigo as suas limitações de nascença, nisso são como Deus, não podem evitar a morte. (...) ... ser-se anunciado por um anjo do céu ou por um anjo do inferno, as diferenças são apenas de forma, são de essência, substância e conteúdo, é verdade que quem fez uns anjos fez os outros, mas depois emendou a mão (p. 102-103).
José não deve ter remorso sozinho pela morte das crianças de Belém que ele não salvou:
José Saramago escreveu:O remorso de Deus e o remorso de José eram um só remorso, e se naqueles antigos tempos já se dizia, Deus não dorme, hoje estamos em boas condições de saber porquê, Não dorme, porque cometeu uma falta que nem a homem é perdoável (p. 107).
Sobre a Lei, na qual o menino Jesus começa a ser educado:
José Saramago escreveu:A criança deve criar-se na Tora como o boi se cria no curral. (...) Melhor fora que a Lei perecesse nas chamas do que entregarem-na às mulheres, também não devendo ser esquecida a probabilidade de que o filho, já razoavelmente informado sobre o verdadeiro lugar das mulheres no mundo, incluindo as mães, lhe desse uma resposta torta, daquelas capazes de reduzir uma pessoa à insignificância, que tem cada qual a sua... (p. 107-108)
Digressões a respeito da integridade que Jó manteve perante Deus e sua disputa com o Diabo:
José Saramago escreveu:... haja vista o caso de Job, arruinado, leproso, e mais sempre havia sido varão íntegro e recto, temente a Deus, a sua pouca sorte foi ter-se tornado em involuntário objecto de uma disputa entre Satanás e o mesmo Deus, cada qual agarrado às suas ideias e prerrogativas... é verdade que a Job o compensou Deus restituindo-lhe em dobro o que em singelo lhe tirara, mas aos outros homens, aqueles em nome de quem nunca se escreveu nenhum livro, tudo é tirar e não dar, prometer e não cumprir (p. 108-109)