Mas vamos ao que interessa. A partir de hoje postarei trechos deste livro do Saramago, numa reconstrução bastante peculiar do que deve ter sido a Boa Nova. Ficção por ficção...
Sobre a "sagrada família":
Sobre a concepção através de um suposto Espírito Santo, mas nem por isso menos erótica:José Saramago escreveu:... a afligida mulher é a viúva de um carpinteiro chamado José e mãe de numerosos filhos e filhas, embora só um deles, por imperativos do destino ou de quem o governa, tenha vindo a prosperar, em vida mediocremente, mas maiormente depois da morte (p. 09).
Em seguida, outra possibilidade de concepção, a mais certa, através de seu esposo, José, depois de este ter se levantado para dar uma mijada:José Saramago escreveu:José, perplexo, olhou o vulto da mulher, estranhando-lhe o sono pesado, ela que o mais ligeiro ruído fazia despertar, como um pássaro. Era como se uma força exterior, descendo, ou pairando sobre Maria, lhe comprimisse o corpo contra o solo, porém não tanto que a imobilizasse por completo, notava-se mesmo, apesar da penumbra, que a percorriam súbitos estremecimentos, como a água de um tanque tocada pelo vento (p. 16).
Reação de José, após o sexo:José Saramago escreveu:... e Maria, entretanto, abrira as pernas, ou as tinha aberto durante o sonho e desta maneira as deixara ficar, fosse por inusitada indolência matinal ou pressentimento de mulher casada que conhece os seus deveres. Deus, que está em toda a parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não podia ver como a pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou a carne dela, criadas uma e outra para isso mesmo e, provavelmente, já nem lá se encontraria quando a semente sagrada de José se derramou no sagrado interior de Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida, em verdade há coisas que o próprio Deus não entende, embora as tivesse criado (p. 19).
Reação de Maria, após o sexo:José Saramago escreveu:... ele, de pé no meio da casa, de mãos levantadas, olhando o tecto, pronunciou aquela sobre todas terrível bênção, aos homens reservada, Louvado sejas tu, Senhor, nosso Deus, rei do universo, por não me teres feito mulher (p. 19).
Sobre qualidades que não cabem a uma mulher, mesmo ela sendo Maria:José Saramago escreveu:Apenas, pela primeira vez, se ouviu Maria, e humildemente dizia, como de mulheres se espera que seja sempre a voz, Louvado sejas tu, Senhor, que me fizeste conforme a tua vontade, ora, entre estas palavras e as outras, conhecidas e aclamadas, não há diferença nenhuma, repare-a, Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra, está patente que quem disse isto podia, afinal, ter dito aquilo (p. 19).
Sobre a fidedignidade do Evangelho escrito por Saramago, diante de outros, os mais famosos:José Saramago escreveu:Ao contrário de José, seu marido, Maria não é piedosa nem justa, porém não é sua a culpa dessas mazelas morais, a culpa é da língua que fala, senão dos homens que a inventaram, pois nela as palavras justo e piedoso, simplesmente, não têm feminino (p. 22).
Obs: Todas as citações são da seguinte edição:José Saramago escreveu:... nomes que aqui se deixam registados para estorvar qualquer suspeita de fraude histórica que possa, acaso, perdurar no espírito de todas aquelas pessoas que destes factos e suas versões tenham obtido conhecimento através doutras fontes, porventura mais acreditadas pela tradição, mas não por isso mais autênticas (p. 29).
SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.