O Corpo Governante, a autoridade espiritual das Testemunhas de Jeová, mais uma vez elaborou um artigo com claros objetivos de atrair para si pessoas incautas, com pouco ou nenhum conhecimento da Bíblia. Essa é a conclusão que tiro ao examinar a revista A Sentinela de 1º de dezembro de 2015, que trás o artigo de capa: “Você pode entender a Bíblia”. Todo o fraseado sugere que foi preparado para uma espécie de campanha especial no campo asiático, bem como, por tabela, a todos os asiáticos espalhados pelo mundo.
Assim, como que falando a um analfabeto, a revista serve-se de uma linguagem bem simples, procurando chegar ao coração de um leigo em cristianismo – presumindo que assim seja o povo asiático.
De imediato procura destacar o valor prático da Bíblia Sagrada, especialmente em campos tais como finanças, família, felicidade e relacionamentos. Isso de imediato atrai a atenção de qualquer pessoa.
Nesse contexto é citado o testemunho de uma japonesa de nome Yoshiko, que estava curiosa para saber o que dizia a Bíblia e então decidiu lê-la sozinha. Ela conta:
Não é dito se Yoshiko é Testemunha de Jeová, mas a frase sugere que seja. Em isso sendo verdade, e se com “objetivo na vida” e “esperança para o futuro” ela estiver se referindo a um futuro paraíso na Terra, que se dará em breve, logo depois do Armagedom, então essa deve ser a primeira pessoa a concluir tudo isso lendo somente a Bíblia, sem a ajuda das Testemunhas de Jeová“A Bíblia me ajudou a encontrar um objetivo na vida e a ter uma esperança para o futuro. Não sinto mais um vazio por dentro” (página 3).
Não dizer que Yoshiko é Testemunha de Jeová pode muito bem ser uma tática sutil, algo como dizendo que você pode encontrar “objetivo na vida” e “esperança para o futuro” sem, contudo, pertencer a uma religião ocidental.
Debaixo do tópico “Um livro para ser entendido”, depois de considerar a antiguidade do livro e mais uma vez destacar que é a Bíblia é um livro fácil de entender e prático para o dia-dia, a revista acrescenta:
O Corpo Governante trás essa questão para uma simplicidade espantosa, como se a Bíblia, um livro de milhares de anos, estivesse até agora nos porões de sua sede, inacessível a toda a humanidade.“Você já se perguntou: ‘Por que estamos aqui?’ Essa pergunta tem intrigado a humanidade há milhares de anos. Mas a resposta pode ser encontrada nos dois primeiros capítulos de Gênesis, o primeiro livro da Bíblia” (página 4).
Pergunta-se: se essa resposta está na Bíblia há milhares de anos, por que será que milhões ou bilhões de pessoas do mundo ocidental ainda procuram a resposta? Não será talvez porque a resposta da Bíblia não é convincente? Mas o Corpo Governante faz uma aposta: os orientais não têm tanto discernimento assim, eles não pensam rápido.
O parágrafo continua, cheio de sutilezas:
“Ali, o relato bíblico volta ao “princıpio” — bilhões de anos atrás —, quando o Universo, incluindo as galáxias, as estrelas e a Terra, veio a existir. (Genesis 1:1) Depois, ele descreve em várias etapas como a Terra se tornou habitável, como várias formas de vida vieram a existir e como os humanos surgiram no cenário — bem como o propósito de tudo isso” (página 4).
Um oriental que ler isso sobre a Bíblia, logo tem sua curiosidade despertada. Um livro tão antigo que fala do surgimento do Universo, sobre como veio a existir a diversidade de vida na Terra – esse livro deve ser muito importante! O Corpo Governante, porém, apesar de citar o primeiro versículo da Bíblia, estrategicamente omite as palavras “criação” e “criador”, coisa que logo criaria um bloqueio numa mente oriental. É como dizem: ele não dá ponto sem nó.
O próximo tópico, “Escrita para ser entendida”, mais uma vez salienta que a Bíblia contém uma linguagem simples, fala das coisas do dia-dia, e que “não é um livro de mitologia nem de fábulas.” A Bíblia pode não ser exatamente um livro de mitologia ou de fábulas, mas essa religião americana tem gasto dezenas, talvez centenas de páginas, e muitas décadas para derrubar esse conceito da mente do povo ocidental, sendo que muitos dos que adotaram esse conceito são religiosos intelectuais, os quais o fizeram depois de muito estudo desse livro considerado sagrado. Ademais, um oriental ficará mais que surpreso que um livro ausente de fábulas contenha relatos onde uma cobra fala, fogo cai do céu, um mar se parte ao meio, dragão sai do mar e uma cidade desce do céu.
No tópico “Disponível para todos”, apesar de negar o crédito por isso à Igreja Católica e muitas igrejas protestantes, o Corpo Governante chama a atenção para o fato de que a Bíblia foi amplamente traduzida e amplamente distribuída, estando, portanto, à disposição de cerca de 90% da população mundial.
Depois de ler o artigo da revista até aqui, depois de saber que a Bíblia é um livro que usa uma linguagem do dia-dia, que não é um livro de fábulas ou mitologias, é surpreendente o que se ler no parágrafo citado a seguir.
.“Nenhum outro texto religioso se compara a Bíblia nesses aspectos. Assim, fica claro que a Bíblia foi escrita para ser entendida. No entanto, pode ser desafiador entendê-la. Mas ha ajuda disponível. Onde você pode encontrá-la? Quais serão os benefícios? Veja o próximo artigo.” (página 5)
O quê?! Depois de apresentar enes razões de que a Bíblia é um livro fácil de entender, como é possível que a revista agora diga algo exatamente ao contrário, que entendê-la pode ser um desafio? Mas é preciso que se diga isso, pois o Corpo Governante não deseja que você corra à livraria mais próxima, compre seu exemplar da Bíblia e ponha-se a lê-la sozinho. Ele precisa dizer que é desafiador entendê-la para logo em seguida colocar-se à disposição para explicá-la para você. Afinal de contas, apesar de ‘a Bíblia ser um livro fácil de entender’, você é incapaz de entendê-la sozinho. Acha isso humilhante? Mas é exatamente esse o conceito da autoridade religiosa.
Isso ficou bem documentado em 1954, quando um caso envolvendo interesses da religião foi levado a um tribunal escocês. Nessa ocasião, o então vice-presidente do movimento, Frederich W. Franz, foi submetido a um interrogatório, onde a questão quanto a quem pode entender a Bíblia deixou mais que evidente qual é o verdadeiro conceito da entidade religiosa. A seguir atente para um trecho do interrogatório. “P” significa pergunta e “R” significa resposta.
.P. Uma Testemunha não tem alternativa senão aceitar como compulsórias e obedecer às instruções publicadas em ''A Sentinela'' ou no ''Informante'' ou na ''Despertai'', não é?
R. Ele tem de aceitá-las.
P. Há alguma esperança de salvação para o homem que depende apenas de sua Bíblia, quando em sua situação no mundo não é possível obter os tratados e publicações da Sociedade [editora de propriedade do Corpo Governante]?
R. Ele estará dependente da Bíblia.
P. Será ele capaz de interpretá-la corretamente?
R. Não.
P. Não pretendo ficar trocando textos bíblicos com o senhor, mas não disse Jesus, ''Aquele que crê em mim, viverá, e aquele que crê em mim jamais morrerá''?
R. Sim.
(Em Busca da Liberdade Cristã, página 25)
Quatorze anos depois, a revista A Sentinela posicionou-se de modo nada incerto sobre o assunto.
À medida que o cânon dos livros da Palavra de Deus e as Escrituras Gregas Cristãs foram adicionadas para terminar a Bíblia, cada livro foi escrito à congregação cristã, ou a certo membro da congregação cristã, em benefício desta. Assim, a Bíblia é um livro de organização e pertence à congregação cristã como organização, não a indivíduos, não importam quão sinceramente creiam poder interpretar a Bíblia. Por esta razão, a Bíblia não pode ser devidamente entendida sem se ter presente a organização visível de Jeová Deus. (1 Pedro 4:17) (A Sentinela de 1º de junho de 1968, páginas 227,230, conforme citada no livro Em Busca da Liberdade Cristã, páginas 120, 121).
Onze anos depois, em um discurso para funcionários da sede americana, F. W. Franz continuava dogmático sobre essa questão:
E tão recente quanto em 1994, o Corpo Governante voltou a se posicionar que ninguém é capaz de entender a Bíblia sem ajuda, por simples e puramente dedicar-se à leitura dela.Alguns estão agora falando em ler a Bíblia, que nós devemos ler “só a Bíblia” Ora, é isso o que as igrejas da cristandade vêm dizendo ao povo há séculos, e olhem a confusão que resultou. (Em Busca da Liberdade Cristã, página 36).
Toda Testemunha de Jeová sabe que esse ainda é o posicionamento da organização religiosa, ninguém pode entender a Bíblia, senão com a ajuda delas, isto é, com a ajuda da literatura bíblica elaborada nos Estados Unidos, na sede internacional do movimento religioso. Se esse é um fato incontestável, pergunta-se por que o Corpo Governante não é absolutamente franco sobre isso? Por que não diz abertamente que ninguém é capaz de entender a Bíblia sem a ajuda dele? Eu compreenderia muito bem se essa estratégia de se posicionar com meias verdades, omitindo informações desagradáveis e ressaltando pontos atrativos, viesse da boca de um vendedor inescrupuloso, que desejasse empurrar seus produtos a clientes incautos. Mas saber que tudo se origina de uma entidade religiosa que se declara escolhida por Deus para representá-Lo da Terra, então não posso deixar de sentir nada mais que asco, uma espécie de revolta, e todo tipo de sentimento negativo, algo tipo como deparar-se com genuínos “vendedores ambulantes da palavra de Deus” (2 Coríntios 2:17).É óbvio que precisaremos de ajuda para conseguir entender a Bíblia. O clérigo Hal Llewellyn, secretário de teologia, fé e ecumenismo da Igreja Unida, disse: “É muito importante esclarecer o que a Bíblia significa para nós, e como é lida e interpretada.” Mas mesmo que nem todos se dêem conta disso, o fato é que não podemos entender a Bíblia por conta própria. Precisamos de ajuda (A Sentinela de 1º de outubro de 1994, página 6).
Artigo elaborado originalmente para meu blog.